ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
Giacomo Meyerbeer - Brasil
1791-1864
BRASIL NA MUSICOLOGIA / MUSICOLOGIA NO BRASIL
CENTRO DE PESQUISAS EM MUSICOLOGIA ND 1967
INDIENNE DE L’AFRICAINE - VASCO DA GAMA
BERLIM E BAYREUTH
1975/76
Giacomo Meyerbeer - Jakob Liebmann Meyer Beer (1791-1864) - pianista, regente e compositor, um dos mais celebrados e influentes vultos da vida musical do século XIX, principal representante da Grand opéra francesa, tem sido há décadas uma das personalidades mais consideradas em estudos musicológicos e culturais em contextos globais. Vem sendo tratado em estudos, aulas, conferências, em colóquios e simpósios internacionais na Alemanha, em Portugal e no Brasil.
Significado
Emborca caído em grande parte em esquecimento, Meyerbeer adquire um extraordinário significado para estudos de processos culturais, não só em contextos europeus. A sua vida, atuação e obra são marcadas por internacionalidade e cosmopolitismo. A sua consideração surge como indispensável para o estudo da vida cultural e mesmo política-cultural de grandes centros europeus, marcados por expansões urbanas, interações sociais e culturais. A sua consideração adequada exige reconsiderações do século XIX, revisões críticas da literatura e de valorações de julgamentos e valorações que prejudicaram a sua imagem e dificultam a análise de desenvolvimentos e de suas amplas dimensões.
Os estudos de Meyerbeer trazem à luz problemas historiográficos, de ética, político-culturais, ideológicos, de racismo e anti-semitismo. Poucos vultos da História da Música foram tão vituperiados como Meyerbeer. Os seus sucessos, o seu enriquecimento, renome e de sua influência, como também de suas qualidades pessoais e atitudes levaram a atos e procedimentos dos mais ínfimos por parte daqueles que o invejavam, injustos, mas de amplas consequências, o que tem a sua principal evidência nada menos do que em Richard Wagner (1813-1883), autor de Judaísmo na Música (Das Judentum in der Musik), publicação odiosa sob muitos aspectos.
Os estudos de Meyerbeer que estão sendo desenvolvidos há décadas não puderam deixar de emprestar particular atenção a essas relações Meyerbeer/Wagner, à problemática do anti-semitismo nos séculos XIX e XX, Meyerbeer foi um dos compositores que, na época nacionalsocialista, ao lado de Mendelssohn e de muitos outros, entre êles do brasileiro Alexandre Levy, deviam ser afastados na literatura e suas obras excluídas de programas de concertos. Essa menção dos Levy em Léxico dos Judeus na Música da época nazista traz à consciência que a problemática do anti-semitismo que atingiu Meyerbeer tem dimensões glogais, nelas inserindo-se também o Brasil.
Os estudos não podem assim limitar-se a análises musicais e a menções de suas obras na literatura histórico-musical. Exigem análises culturológicas, exames de problemas em contextos e processos que ultrapassam fronteiras, de estudos culturais conduzidos a partir da música e, reciprocamente, de abordagens musicológicas adequadas, marcadas por uma orientação a questões culturais em dimensões supra-nacionais.
Nascido em localidade próxima de Berlin na região de Brandenburg, Alemanha, viveu, atuou e alcançou sucessos nos principais centros da vida musical européia do século XIX. Como principal representante da Grand opéra francesa, marcou sob muitos aspectos a vida musical da França, em particular de Paris. Meyerbeer, na sua vida e obra, atravessou fronteiras de esferas alemã e francesa, participou das interações ítalo-francesas, residiu em Baden Baden, um dos aristocráticos balneários alemães na fronteira da França, sendo a sua personalidade, vida e obra marcada por internacionalidade e cosmopolitismo.
Desenvolvimento dos estudos
O redescobrimento revalorizador de um compositor cujas obras em grande parte caíram em esquecimento remonta a reflexões encetadas e a estudos realizados no Brasil na década de 1960. O centenário de sua morte, em 1964, despertou o interesse pela sua vida e obra, sendo relembrado em círculos musicais dedicados à ópera e a estudos histórico-musicais em geral. A tomada de consciência da necessidade de pesquisas e estudos mais atentos de Meyerbeer e da difusão e do culturivo de suas obras no Brasil levou a diálogos com historiadores e críticos, assim como pesquisas de fontes em acervos particulares e arquivos.
É compreensivel que Meyerbeer tenha despertado tanto interesse em movimento desencadeado em círculos musicais de São Paulo na década de 1960. A sua vida, embora considerada apenas mencionada na história da música, correspondia aos intentos de difusão de uma nova mentalidade, atitudes e procedimentos vmarcados por abertura, pela passagem de fronteiras e divisões de áreas, esferas e contextos, e assim por internacionalidade e interdisciplinaridade.
Essa orientação teórica dirigida a processos que atravessam delimitações foi aquela que determinou reflexões e trabalhos do Centro de Pesquisas em Musicologia constituído no âmbito do movimento Nova Difusão. Nele desenvolveram-se pesquisas de acervos e arquivos que levaram ao descobrimento de fontes que documentam a recepção de obras de Meyerbeer no Brasil do século XIX.. Meyerbeer foi uma das personalidades consideradas com especial atenção em cursos de História da Música promovidos pelo movimento Nova Difusão e seu centro de pesquisas em 1970 e, em nível superior, em cursos da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo.
Indienne de l’Africaine no Brasil
A mais importante fonte levantada em pesquisas realizadas na década de 1960 em cidades brasileiras foi a da Marche Indienne: l’Africaine, Ato IV de Meyerbeer proveniente de Guaratinguetá e que também foi executada em outras cidades do vale do Paraíba como Pindamonhangaba, São Luis do Paraitinga e Cunha. As partes, para banda de música, foram examinadas sob vários aspectos, da aquisição de edições da obra, em particular das grandes marchas do Ato IV de L’Africaine publicadas por A. Pond & Company, em 1877, de sua instrumentação segundo as possibilidades locais, de suas execuções em atos que exigiam obras de especial magnitude da vida politica e cultural de cidades em décadas de transformações urbanas e de vias de comunição do interior paulista com o Rio de Janeiro.
A presença da obra em repertório regional foi considerada sob a influência que teria exercido na formação e obra de um compositor como João Gomes de Araújo (1846-1943), principal personalidade da cultura musical local e que, transferindo-se para São Paulo, exerceu papel relevante no ensino e na vida musical da capital. O descobrimento da obra no vale do Paraíba motivou o exame de arquivos de São Paulo, em particular do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, assim como da programação do Teatro Municipal através das décadas.
O descobrimento dessa fonte despertou grande interesse em círculos dedicados a estudos musicais e culturais de São Paulo. Ela não só documentava a recepção e cultivo de obras de Meyerbeer e da atenção com que se acompanhavam desenvolvimentos da vida musical internacional nessa região, como também e sobretudo pela sua temática. Este extraordinário significado de l’Africaine de Meyerbeer para Portugal e o Brasil evidencia-se no fato de ser a obra também denominada de Vasco da Gama. Foi assim reintitulada pelo próprio Meyrbeer pouco antes de falecer. Os dois títulos l’Africaine-Vasco da Gama foram utilizados pelo pesquisador, crítico e compositor belga François-Joseph Fétis (1774-1871) que, retomando as partes da obra após o falecimento do compositor, preparou-as para sua primeira execução, em 1865.
Vasco da Gama no seu significado para Portugal e o Brasil
A tomada de consciência de que l’Africaine-Vasco da Gama se refere a um dos maiores navegantes da história dos Descobrimentos, daquele que encontrou o caminho para as Índias e desempenhou papel da maior relevância na presença européia no Oriente foi o principal fator que marcou desde então os estudos de Meyerbeer. Também essa temática revela a necessidade de abordagens voltadas a processos em contextos globais, a processos mundializadores. Ela revela sobretudo o interesse por Vasco da Gama, pela sua viagem à Índia no século XIX, o século do Historismo, da procura do distante no tempo e no espaço, o século que foi também marcado pelo interesse pelas tradições de povos, o da Etnografia e do Folclore, o que confere à obra um extraordinário interesse para historiografia do século XIX nos seus múltiplos aspectos.
Foi essa temática que marcou os desenvolvimentos posteriores e a atenção que foi dedicada a Meyerbeer no projeto musicológico brasileiro desenvolvido na Europa a partir de 1974. Vasco da Gama foi desde então sempre lembrada em diálogos e encontros com pesquisadores portugueses no âmbito do projeto que teve como objetivo contribuir ao desenvolvimento de uma musicologia de orientação dirigida a processos culturais em contextos globais.
Foi tratada de início em encontros com a musicóloga portuguesa Maria Augusta Alves Barbosa, professora de História da Música do Conservatório Nacional de Lisboa no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia, onde atuava, dedicando-se ao estudo da música dos séculos XV e XVI de Portugal. Foi essa obra uma das principais motivações do interesse pelo consideração da expansão portuguesa na era dos Descobrimentos que marcou os estudos desde então desenvolvidos.
Reconsiderações do século XIX
A obra correspondeu assim sob diversos aspectos à orientação e aos objetivos do projeto musicológico brasileiro, o de contribuir ao desenvolvimento de uma musicologia voltada ao estudos de contextos e processos em contextos globais em cooperações internacionais e com especial consideração do século XIX.
Esse enfoque correspondeu à atualidade de interesses pelo século XIX na musicologia, em particular também nos estudos concernentes ao mundo extra-europeu. Esse interesse manifestava-se na publicação de volumes dedicados às culturas musicais em diferentes regiões do mundo, empreendimento idealizado por Karl Gustav Fellerer (1902-1984) e desenvolvido na seção de Etnomusicologia do Instituto de Musicologia de Colonia sob a direção de Robert Günther (1929-2015).
Em 1975, encontrava-se em preparação o volume destinado às culturas musicais da América Latina no século XIX, no qual atuavam pesquisadores de diferentes países latino-americanos. Os trabalhos desenvolveram-se em estreitas relações com o projeto brasileiro voltado ao desenvolvimento de uma musicologia de orientação voltada a processos e que era conduzido em cooperações com pesquisadores portugueses.
Meyerbeer e Wagner nos estudos de 1976
Meyerbeer, no centro das atenções do círculo português-brasileiro de Colonia desde 1975, foi considerado nas suas relações com o antigo Conservatório - hoje Escola de Música Renana - e seus vinculos com o Conservatório Stern in Berlim.
Meyerbeer esteve particularmente no foco de atenções em 1976 em estudos e diálogos realizados por ocasião do Centenário da Casa de Festivais de Bayreuth. A presença brasileira em todo o evento - que entrou na história pelos debates decorrentes de intuitos e projetos renovadores de concepções e encenações, em particular do Anel de Nibelungo - o „Ring do século“ -, foi preparada por estudos da literatura sobre Wagner e sobretudo da leitura integral seus escritos. Entre estes, o Judaísmo e a Música (Das Judentum in der Musik) foi objeto de atenção e debates conduzidos no Instituto de Musicologia de Colonia.
Meyerbeer foi um dos principais tópicos tratados em Bayreuth com Hans Mayer (1907-2001), linguista, publicista, renomado pelos seus estudos de Wagner e dedicado sobretudo a problemas do anti-semitismo, que êle próprio vivenciara e que via como um dos fracassos do Esclarecimento burguês no seu „Außenseiter“. Os estudos de Wagner e das suas relações com o Brasil que constituiram o escopo principal da presença brasileira em Bayreuth em 1976 relacionaram-se estreitamente com aqueles referentes a Meyerbeer.
No mesmo ano, necessidade de revisões historiográficas do século XIX na musicologia foi tema dos Dias da Música de Kassel, considerando-se nos debates, entre outros aspectos, o gradual esquecimento ou silenciamento de compositores e obras no decorrer do século XX, entre êles de Meyerbeer ou de obras no passado altamente celebradas na sua espetacularidade como Les Huguenots, grande ópera em 5 atos com libretto de Eugène Scribe (1791-1861) e Émile Deschamps (1791-1871), levada em cena pela primeira vez em 1836.
Vasco da Gama e o estudo da música no espaço lusófono
A ópera l’Africaine - Vasco da Gama foi constantemente considerada nos anos seguintes pela sua temática, intensificando-se desde a oficialização do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS) no Ano Europeu da Música em 1985. Já na sua inauguração tematizou-se o problema do antisemitismo que marcou negativamente a consideração de compositores como Meyerbeer ou os Levy na historiografia.
Os estudos referentes à música nos Descobrimentos e das consequências decorrentes de contatos marcaram desde então pesquisas e iniciativas decorrentes das rememorações de 500 anos de datas que surgem como marcos na história das Descobertas. Foi lembrada em estudos realizados em locais marcados pela memória de Vasco da Gama na Índia, em Goa e em Cochim, e em estudos da música em processos da expansão européia no espaço de antigo Direito de Padroado Português publicados e debatidos em Roma, na Alemanha e em Portugal.
Esses estudos foram sempre acompanhados por considerações sobre a própria historiografia dos Descobrimentos e nela sobre a imagem de Vasco da Gama no século XIX e suas extensões no XX, salientando-se aqui a ópera de Meyerbeer. L’Africaine-Vasco da Gama foi lembrada por ocasião do Ano Vasco da Gama emm sessão no curso de mestrado em musicologia na Universidade de Coimbra e em colóquio internacional realizado com a Comissão dos Descobrimentos Portugueses e do Centro Gil Eanes de Lagos no Brasil em 1998.
A ópera Vasco da Gama de Meyerbeer foi considerada nos ciclos universitários dedicados à História da Música em Contextos Globais ministrados nas universidades de Colonia e Bonn a partir de 1998. A Mayerbeer foi dedicada uma sessão na série de aulas dedicadas ao Classicismo e Romantismo realizada no grande auditório da Universidade de Bonn em 2003.
Essa problemática e a ópera l’Africanaine-Vasco da Gama foram tratadas no ciclo Música no Encontro de Culturas na Universidade de Colonia a partir de 1997, no Simpósio Internacional pelo Ano Vasco da Gama e em cursos de História da Música em Contextos Globais na Universidade de Bonn, em 2003/4.
Nos anos que se seguiram, Meyerbeer, com especial consideração da ópera L’Africaine-Vasco da Gama foi tratado em seminários, encontros e estudos realizados em cooperação com a Academia Brasil-Europa em Colonia e em Berlim. Estudos em bibliotecas de Berlim iniciados em 1975 tiveram desde então prosseguimento. Em todos esses estudos participou intensamente a pianista, pedagoga e pesquisadora Isolda Bassi-Bruch a partir de obras conservadas no acervo de Hans Bruch, músico e pesquisador que teve a sua formação no Conservatório de Colonia, e que documentam a recepção de obras de Meyerbeer em São Paulo.
Materiais
disponíveis na internet
https://revista.brasil-europa.eu/143/Emanuel-Korff.html
https://revista.brasil-europa.eu/143/Principe-brasileiro-e-Deutschtum.html
https://revista.brasil-europa.eu/143/Indice_143.html
https://revista.brasil-europa.eu/127/Grimma-Theodor-Uhlig.html
https://revista.brasil-europa.eu/160/Achille_Arnaud.html
https://revista.brasil-europa.eu/161/Carlos_Gomes_em_Milano.html
https://revista.brasil-europa.eu/159/Maglioni_e_Brasil.html
https://revista.brasil-europa.eu/139/Nepomuceno-Arno-Kleffel.html
https://revista.brasil-europa.eu/159/Alfredo_de_Andrade.html
https://revista.brasil-europa.eu/154/Oscar_Pfeiffer.html
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